XAVIER PLACER
(1916-2008)
Professor universitário, bibliotecário, atuou na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Nasceu em Niterói, em 1916. Autor de muitas obras ensaísticas, de poesia e prosa refinadas. É membro da Academia Niteroiense de Letras.
I
... Porque para esse recalcitrante vivente, o homem,
a poesia importa pouco.
Mas está-aí. E assume muitas formas, silentes,
insidiosas, submarinas.
A poesia sabe-se destino, a poesia
sabe-se a íntima do ser, e lá
- seva não, grande senhora –
dobra a alva túnica-sem-costura e ajoelha todas as horas.
Aqui a poesia empresta aos mármores a matéria de seu rosto.
XXXII
ALEGRIA nessa vitória! Destemor, eis a palavra.
Então cerravas os olhos. E os cerravas, oh labirinto!
para não ver. Romper
foi preciso lógicas e guardados,
irrisórias horas desviver, tantos fogos avivar. – Um dia
madrugou.
Contempla, contempla como esse em labaredas
consumou o prisioneiro, formidável incêndio.
UM HOMEM CAMINHA SOLITÁRIO E FORTE
EM CAMPO ABERTO.
Extraídos de Sondagem. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1977.
SÉTIMO ANDAR
Nem aurora ou galo
Três da manhã
o irreal se adensa:
conjunto nulo
o alto silêncio
Cheiro em ascensão
do pão a cozer
é o fresco BOM-DIA
O GESTO
Junto às coisas somos
que nem dão por nós
Vertigem e fúria –
tudo na voragem
fenece e perece
Só o gesto, o claro
gesto, funda
morre nunca
A ERIKA
Não desesperes, Érika
da sorte
Um a um os teus deuses
mudaram-se pra América
do Norte?
Toda-poderosa –
dança! voa! ri da morte
Extraídos de Minipoemas. Rio de Janeiro: Edições Xagorá, 1978.
Mortos os dias. Morta
a aventura. Morto o afã de absoluto
Dura o grande pinheiro na planície,
duram, sem tempo, as pedras do castelo;
naus das terras d´Irlanda e Cornualha
rompem as águas; reina el-Rei; pervivem
a aia, os felões, a felonia. Dos que acordam
a provam, desde a hora primeira,
o selo. – Que passe a amada
a Bela-dos –Cabelos-de-Oiro e junto
jaza ao amigo inerte. Foram chama.
A luz e seus contornos os negaram,
o chão e o destino, a noite os una:
deles amantes! A paixão, deles a morte
TRISTÃO & ISOLDA
aqui, legenda e símbolo se unindo para esplendor de Eros ; a Arnaldo José de Castro.
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PELO QUE o acaso tenha carreado
para teus óleos de efêmero
isso, Pancetti, não conta, o tempo desagrega;
mas pelas tuas lisas pinceladas
assimiladas por mãos de grumete a pintar navios
(mãos de neto e filho de artesãos em mármore
Mestres d´obras de Massa e de Carrara);
tuas cores ascéticas
cores que entre a paleta e o lugar do quadro
ascenderam e estão; pela, neles,
aérea perspectiva, céus intuídos, adivinhados;
aquele deus-dentro-de-ti perante a tela em branda
logo palpitação de mares e de pedras, de areias
e de barcos, - isso ficará.
PANCETTRI PINTOR PINTURA
Pancetti (anteponha-se José), o das marinhas & figuras espantosas.
Extraídos de Memorial. Rio de Janeiro: Edições Zagorá, 1980.
15
T AL-QUAL o vermelhar da rosa no capulho
que em círculos entorna aroma
seu pudor
o amor ama
e ama porque ama, o amor
Mas regougam feras nos fojos
pântano ciladas outros frêmitos
estão presentes são ativos
Qu´é deles? – os nupciais – ali
onde jorravam águas saltarinas, ali
onde a serpentina
plumagem de dois cisnes o alvo colo alongava?
Tudo conspira
então prenúncio de desastre
O dom maior, a beleza, ah! abeleza
É terrível; a posse? – o limite
Extraído de O Jovem Par. Rio de Janeiro: Edições Zagorá, 1985.
TESTAMENTO
EU, Abderame III,
Califa da ilustre Córdoba,
Por meio-século reinei.
Na guerra andei meu cavalo
minha espada me deu fama,
coroei, na paz, as letras.
Riqueza honra prazeres
chegava tudo a um aceno:
aparentemente nada faltou
a tanto poder.
Mortal, quem quer que sejas,
no esperes aqui felicidade.
isto te deixo em meu escrito:
meus dias felizes neste mundo
cuidadosamente os contei,
- sobem a catorze.
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recortado de um escólio às obras
de Vauvenargues.
Extraído de Cartuns. Niterói, RJ: Letras Fluminenses, 1990.
REVISTA DA ACADEMIA NITEROIENSE DE LETRAS. Edição Especial 2003. Impressão: Folha Carioca Editora Ltda. 112 p.
Ex. bibl. de Antonio Miranda
Mar de cada um
Eu nunca vira o mar... Imaginava
Altos rolos de espuma num escarcéu
Rompendo em sal e convulsões de lava
Contra os muros de pedra até o céu.
Um dia o conheci. Desfez-se a imagem
Sonhada do meu mar com seu segredos:
Vio em ondas e escamas, e na margem
Brancas velas ali, feito brinquedos.
Então voltei aquele mar primeiro
Oculto mar em mim, mar violento
Porém único mar e verdadeiro.
É nele que me é grato navegar
É nele que eu agora me concentro
Em chama ardendo — ó ilha singular!
XAVIER PLACER. POEMAS. Brasília: Thesaurus, 2006. 10 x 15 cm. Biblioteca do Cidadão. Série Escritores Brasileiros, 29. 16 p.
No. 10 114
Exemplar na biblioteca de Antonio Miranda.
CÂNTICO DE ALEGRIA INTELECTUAL
Somos tropelados
Cegados no tempo.
De ruídos e fúria.
Mas grato uma vez
Ter vindo e vagar
Vivos sob o Sol.
Cativos nos lindes
Da Cidade, o outro
Dom maior é dado:
Convívio e palavra.
E onde cresce a água
Madurece o trigo.
Para isto somos:
Ousar e sonhar.
Para isto estamos:
Conhecer e amar.
Para isto viemos:
AMAR E MORRER.
(Mosaico).
O DICIONÁRIO
Penetra surdamente no reino
das palavras.
CDA: Procura da Poesia.
É outro universo!
Está tudo no grosso livro.
Também a poesia, toda a poesia.
Por etimologia, abonações,
por entre agressivos prosaísmos,
nele a poesia se entranhou.
Silente,
plena de natural rumor,
em ordenadas colunas por página,
basta deixar fugir a caça, esquecer
o que de utilitário se ia buscando.
E surpreendê-la!
Apoesia que se entrega.
(Cartuns)
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Página ampliada e republicada em outubro de 2024.